Um Caleidoscópio de Imagens
“Como imagem sou um caleidoscópio
entre a abstração e a utopia,
entre a ambiguidade e o sonho.
Como experiência do imaginário
posso ser tudo, de reflexão à revolução.”
Discurso da Imagem, Luiz Rosemberg Filho
Menos identificado como artista visual que como cineasta, a produção de colagens de Rosemberg é um universo tão fértil e consistente quanto sua produção audiovisual. Seguindo a lição da vanguarda modernista, Rosemberg pratica a colagem como uma arte de experimentação de linguagem, o que no caso não poderia ser diferente de experimentar a liberdade, estar em estado incensurável, investigar o erotismo e provocar os limites de seu potencial imaginário. Apoderando-se das facilidades que o meio da colagem oferece, com elementos tão simples e acessíveis como um cartão postal e uma revista qualquer, Rosemberg fez dessa arte uma constante, um esforço cotidiano de pesquisa estética, de tradução da natureza humana e um incessante exercício de criação de imagens.
Muitas vezes utilizadas como conteúdo visual em seus filmes, as colagens de Rosemberg são marcadas pelo mesmo senso de humor ácido e crítico, pela profundidade e potência onírica que o diretor articula na estética do afeto que atravessa seu cinema. Por vezes compostas diretamente para atrair, iniciar ou seguir uma conversa com alguém, Rosemberg costumava presentear os amigos com colagens que ficaram dispersas em coleções particulares. Algumas destas puderam ser agregadas para esta exposição com o objetivo de trilhar esse sentido afetivo contido na produção e exposto do verso das colagens, que muitas vezes serviu como papel para escrita de longas e amorosas dedicatórias nas quais Rosemberg mostrava toda sua sensibilidade e generosidade artística e pessoal. Estão nas dedicatórias pistas valiosas sobre o seu processo de composição e sobre o enigmático sentido sugerido pela aproximação e sobreposição de imagens. Sempre que possível aqui transcritas, nestas dedicatórias constam ainda as poucas informações de data e título que nos permitiram situar alguns passos do autor no interior de uma obra que não teve como rotina assinar, datar ou intitular os trabalhos.
Rosemberg compôs um acervo estimado em cerca de 2 mil obras criadas ao longo de 44 anos de trabalho, de 1975 (ano em que cria a primeira colagem para o cartaz do filme A$suntina das Amérikas, a qual seria rejeitada pela Embrafilme como arte final mas que acabaria aproveitada como parte no cartaz do filme) até 2019, ano de sua morte. O acervo, recentemente depositado na Cinemateca do MAM, pode ser dividido em dois tipos de técnica: a da colagem de papel sobre papel, feita com recortes de revistas sobre cartão postal, e a que tem início na década de 1990, da colagem de papel sobre radiografia.
Utilizando as radiografias de um câncer que o acometeu e de diversas partes de seu corpo, a composição dessas últimas evoca imagens oníricas e temas mais densos ou elevados, como o tempo ou o teatro, representados pela presença de estátuas, máscaras ou esqueletos que têm sua nitidez modulada por áreas de maior ou menor opacidade gerada por órgãos, linhas de ossos ou trechos de diagnósticos, letras e números indecifráveis. O uso que faz Rosemberg do material de Raio X como suporte permite examinar a superfície da obra enquanto claro-escuro, transparência e opacidade, ou mergulhar nas entranhas do próprio corpo do autor-colagem, uma zona de autocriação e infinita fonte do imaginário. O Raio X, usado como camada intermediária na montagem destas colagens, com recortes posicionados acima e abaixo da película, vela e desvela primeiros e segundos planos, densidades e luminâncias, uma técnica original e sofisticada que Rosemberg dominou enquanto linguagem cinematográfica, escala de cinzas atravessada por elementos coloridos manipulados em sua nitidez e contraste.
Destacam-se nessas colagens de Rosemberg a reincidência de elementos circulares os quais vai reposicionando nos amplos campos de sentido criados em cada obra —o relógio, a lua do filme de Meliés, o rolo de película, a lente da câmera, o visor do cineasta, o globo terrestre e o globo ocular — elementos que se intercomunicam e por vezes se equivalem entre si como o mesmo signo da efemeridade humana, da passagem do tempo, e da importante presença do cinema e do olhar/ lente do cineasta sempre presente como agente, observador e transfigurador, do curso da história.
Semelhante à vida da película cinematográfica, o material sensível da chapa de Raio X empresta às colagens, já carregadas de sentido, uma dimensão material viva que seguirá reagindo quimicamente ao longo do tempo futuro, prateando e reluzindo, mutando o visual da obra em novas luzes e sombras. É essa escrita mágica e estrutural do corpo próprio de Rosemberg que abre a seleção de colagens aqui apresentada e ocupa a metade do espaço da exposição.
A segunda parte, destinada às colagens de papel sobre papel, organiza-se pelo agrupamento de algumas séries que puderam ser identificadas no universo acessível deste imenso acervo ainda por ser catalogado. Destacam-se aquelas feitas como resposta afetiva, ou retribuição e estímulo artístico em imagens, a trabalhos de amigos; a série em que homenageia e deixa ver sua plêiade (são colagens que sobrepõem Deus e o diabo na Terra do Sol a Orson Welles, Nietzsche a Godard, ou Zé Celso ao papa na cena da descoberta do Brasil); a crítica à política e à TV brasileira, as colagens feitas para ilustrar os periódicos Balaio e Via Política; e ainda o elogio ao feminino e ao prazer sexual, despidos de qualquer falso moralismo.
Por fim, observamos as obras que irão fundir definitivamente o cinema de Rosemberg com suas colagens, ou permear colagem e cinema a partir do uso do chroma key artesanal (áreas das colagens cobertas em papel verde), para efeito de aplicação de vídeo sobre papel, em ilha de edição. Encerram a exposição dois painéis com colagens de fotografias que o diretor mantinha expostos em sua casa: um de diversas cenas de filmes antigos em preto e branco, e um de fotos de toda a sua trajetória pessoal, sobre um gigantesco quadro de madeira, uma espécie de caleidoscópio autobiográfico ou uma panorâmica sobre vida e obra de Luiz Rosemberg Filho.
Maria de Andrade
Rio de Janeiro, 6 de novembro de 2020