Memórias 2 Ricardo Miranda

24.12.2017

Redescobrir o que se filmou mesmo sabendo, múltiplos são os caminhos. Ousaria até dizer que o material bruto, é uma espécie de rascunho da montagem. Da materialidade das imagens as palavras, tudo torna-se linguagem! O montador (a) é uma espécie de esforço de uma procura nem sempre muito clara. Mas no seu terno acesso à intimidade de sons e imagens nascerá a formulação de um filme/pensamento. E no meu processo de desalienação do cinema, aprendo sempre muito com o montador! Logo depois que filmei a “Cronica de um Industrial”, parei um bom tempo para pensar. O filme estava todo rodado, exatamente como eu queria. Havíamos feito um trabalho como uma espécie de mergulho nos escombros da política vigente. E o problema: quem eu poderia chamar para montá-lo escondido na moviola do antigo INC? Ninguém poderia saber que o filme estava sendo montado, para não criar o velho disse-me-disse dos invejosos. Nós o tínhamos feito sem nada! Depois de uma longa espera a Embrafilme deu um avanço de distribuição, e chamei o Ricardo Miranda. Foi ótimo o nosso encontro, e o nosso trabalho com a queridíssima Marta Luz como assistente do Ricardo! Miranda ao ver a complexidade do material me pediu uns tempos para ver e rever só o material, e pensar. Foi o máximo o seu trabalho comigo pois só trabalhamos o sentido, as contradições e a complexidade do material que não era fácil. Era como escavar reflexões num espaço de esmeralda tendo as lindas e talentosas Ana Miranda, Katia Grumberg e Adriana Figueiredo como uma luz forte e sensível permanentemente presente! Ricardo era de uma pureza que eu poucas vezes vi no nosso cinema.Não pureza religiosa que é uma besteira, mas uma espécie de gozo bem-sucedido, também muito raro. Ricardo buscou sempre uma organicidade entre o que era dito, e as imagens de Antonio Luis fotografando com sensibilidade o seu primeiro longa. E nada podia ser uma ilustração naturalista da política que se estava vivendo! Ricardo manejava a moviola como um prolongamento sensível do seu pensamento, desrealizando um certo sentido moral/imoral da personagem do Renato Coutinho. Ricardo mergulhava fundo na imundice da política dominante! Não tenho certeza, mas acho que foi o Ruy Guerra que me disse que o filme parecia um Requiem! E como era uma grande experiência para todos, também desrealizamos qualquer sentido espetáculo. Queríamos mergulhar no inferno dos discursos e das imagens precisas e imprecisas! Ricardo na sua vastidão de sonhos infinitos, deixou-se entregar a uma certa obscuridade da ficção. O mundo como imagem era pouco. O cinema como palavra se esgotava nele mesmo. E quando dava um corte que o satisfazia, dizia sorrindo baixinho: ” -Cortem-lhe a cabeça!” Riamos do significado desse encontro criativo e ousado. Não era, e não foi uma montagem bodada, mas feliz e bem humorada, sempre! O tom agressivo da política das fardas, era confrontado com a poesia. Me impressionava a singularidade e o desembaraço do seu modo vivo de lidar com o material pesadão, sem o menor mal-estar. Dito de outra maneira: Ricardo estilizava com bom humor, todas as dificuldades e contradições que iam aparecendo. O filme era pesado, mas ríamos na busca de um estilo em que a encenação pudesse respirar espaços e afetos que não deram certo na vida das personagens e do país que era o nosso! Trabalhar a beleza é muito mais difícil que o permanente show de banalidades coloridas da política dominante. E foi sim no ant-clichê que optamos por navegar. Tenho saudades desse meninão que edificou infinitas possibilidades para os sonhos carregados de poesia e afeto. E nesse sonambulismo de fascismo em que vivemos hoje, Ricardo Miranda é uma referência a ser pensada e seguida! E veio do seu encantamento pelo nosso trabalho, pelo nosso encontro o seu segundo maior presente que foi me apresentar a talentosa Joana Collier, Sempre que estou com ela sinto que o Ricardo está por perto! Lindos.” Luiz Rosemberg Filho/Rô