Rosemberg, o cinema e a vida
Num olhar retrospectivo sobre a trajetória de Luiz Rosemberg Filho (1943-2019), percebemos uma postura radical e coerente onde vida e obra não se separam. Rosemberg viveu e amou o cinema como poucos. Foram mais de cinquenta anos dedicados ao pensar e ao fazer cinematográfico – “o cinema precisa ser reflexão, precisa pensar o mundo”, sempre dizia – durante os quais realizou cerca de sessenta filmes, entre curtas, médias e longas metragens. Produziu incessantemente não apenas filmes – mas colagens, textos, roteiros – desde meados da década de 1960 até o ano de 2019.
Apesar de todas as dificuldades inerentes à atividade cinematográfica no Brasil, nunca deixou de produzir. Durante os anos de chumbo, teve seus filmes sistematicamente censurados e, ainda assim, não arrefeceu. Mais tarde, na impossibilidade de realizar longas, passou aos curtas; na impossibilidade de filmar em película, ainda no início dos anos 80 passou ao vídeo; na impossibilidade de produzir filmes de ficção, inventou um estilo próprio na feitura de filmes colagens ensaísticos e artesanais. Raramente conseguiu verbas públicas para produzir e, mesmo com parcos recursos, produziu mais e mais. Nunca deixou de pensar e fazer cinema. Nunca abriu concessões ao que quer que fosse. Em suas obras, aliou radicalidade formal a temas sempre contundentes. Manteve-se fiel ao cinema, que para ele se misturava à vida, enquanto postura. Mais do que isso, fez do cinema uma forma de se relacionar com o mundo e com as pessoas.
Nesta Panorâmica, pela primeira vez, poderemos assistir a quase totalidade de sua filmografia. Para sermos mais exatos, 56 dos aproximadamente 60 filmes realizados por Luiz Rosemberg Filho como diretor. Ficam de fora apenas obras realizadas em película ainda não digitalizadas: sua estreia no cinema, o longa “Balada da página três” (1969), e os curtas “Um filme familiar” (1977) e “Ideologia” (1979). E, talvez, filmes que possam ter se perdido ao longo de tantos anos e em meio a tantos filmes.
Sua filmografia está aqui disposta em 22 programas, que contemplam 9 longas, 9 médias e 38 curtas metragens. Desde suas primeiras obras, identificadas com o ciclo marginal (ou, como preferia, “de invenção”), filmes viscerais e contestadores como “O jardim das espumas” (1970) e “Imagens” (1972), em que alia certa estética própria aos filmes marginais à preocupações políticas e sociais que o aproximam do cinemanovismo; passando pelo anti-musical antropofágico-alegórico “A$suntina das Amérikas” (1975) e pelo melancólico e reflexivo “Crônica de um industrial” (1978).
Antes da passagem para o vídeo, Rosemberg realizou curtas em película como “Auschwitz” (1980), espécie de protótipo de sua futura produção de curtas, em que une discurso afiado contra os meios de comunicação de massa, a sociedade de consumo e a opressão da guerra à estética de colagem e ao reemprego de materiais de arquivo. Os primeiros vídeos de Rosemberg, como o chanchadístico e impagável média “Videotrip” (1984), aliam momentos de ficção e documentário/ensaio, característica marcante nos filmes desse período. “Por fim passei para o vídeo. É, queiram ou não, a continuação dos nossos primeiros sonhos de um CINEMA INDEPENDENTE. Como o cinema tá nas mãos da incompetência, estudemos o vídeo, via Brecht, W. Benjamin. E vamos chegar lá”, relatou ao amigo Jairo Ferreira em trecho de carta publicado no livro “Cinema de Invenção”. E assim o fez, ao longo das décadas seguintes.
Notáveis são os vídeos que realizou entre 1993 e 94, uma série de oito curtas que intitulou informalmente como “Experimentais” (Programa 4), feitos com a colaboração de seu irmão, Tito. Rosemberg passou por vários formatos de vídeo até chegar ao digital, nos anos 2000. Mais precisamente no ano de 2005, começa a produzir curtas em digital a todo vapor. Nesses filmes artesanais, feitos de forma caseira e a custo praticamente zero, desenvolve um estilo original e único. Alia a leitura de textos, que funcionam como narração/voz over às suas colagens (empreendidas em papel), que se sucedem na tela; agrega filmagens originais – em grande parte realizadas em sua casa –, ao trabalho com found footage; frequentemente recorre à citações textuais, numa profusão de alusões que vão da filosofia e literatura ao cinema, à poesia e às artes em geral. Dialoga intrinsicamente – não apenas pelo emprego das colagens – com as artes visuais.
Em seus curtas, discute sempre de forma crítica e reflexiva temas que vão desde os mais objetivos (“Dinheiro”, “Trabalho”, “Guerra$”, “Cinema”) até temáticas que permeiam subjetividades (“Fragmentos”, “Passagens”, “Desertos”, “Afeto”, “Gozo/Gozar”). Seus curtas possuem, invariavelmente, certo teor de agitprop. Conta, em seus curtas, com a participação de velhos e novos amigos, em diversas funções que vão da leitura/atuação às áreas técnico-criativas. Generosamente, abriu as portas do cinema para inúmeros jovens. Seu mais longevo colaborador – e fiel escudeiro – foi o Renaud Leenhardt, responsável pela fotografia de quase 50 de seus filmes.
Após um hiato de 32 anos, Rosemberg retorna à direção de longas metragens de ficção, com obras como “Dois casamentos” (2014) e “Guerra do Paraguay” (2016). São filmes em que os poucos recursos financeiros e dificuldades de produção são superados, em muito, por roteiros primorosos e pelo cuidadoso e persistente trabalho com o elenco. Se seus primeiros longas já possuíam indelével dialogo com estéticas e autores teatrais, aqui tais ecos se tornam ainda mais manifestos. Neste sentido, seu derradeiro longa, “Bobo da Corte” (2019), filme-testamento finalizado pouco antes de sua partida, é exemplar. Supera todas as limitações de produção, quaisquer que sejam, e transfigura os mínimos recursos de produção na mais singela, lúdica e potente poesia em estado bruto.
Completam esta retrospectiva três documentários sobre Rosemberg, filmes com a participação do cineasta nos quais podemos perceber seu amor pelo cinema e pela vida, sua verve contestadora e iconoclasta, a postura e a acuidade com que pensava e criava.
Vendo sua coerente e vigorosa filmografia em retrospecto, aferimos que o cinema de Rosemberg é o que permanece e se perpetua como um farol a iluminar os nossos passos, transpondo toda e qualquer barreira.
Viva Luiz Rosemberg Filho, o Rô, e seu cinema!
Gonçalves, 08 de novembro de 2020.
Renato Coelho.